Trecho do livro "A Língua de Eulália", interessantíssimo:
- Quantas vezes você já ouviu
alguém dizer Cráudia, grobo, pranta, ingrês, broco e teve muita vontade de
rir, se é que não riu gostoso? Ou então, teve pena do “pobre coitado” que
“não sabe português” e fala tudo “errado”? Afinal, os professores, os
livros, as gramáticas e os dicionários nos ensinam que o “certo”, o “bonito”
é falar Cláudia, globo, planta, inglês, bloco... Emília, Sílvia e Vera
estão muito sérias, atentas a cada palavra de Irene. — Mas será que é
mesmo assim tão engraçado? — pergunta Irene. — Vamos ver. Ela se levanta,
vai até a lousa e escreve algumas palavras: igreja Brás praia frouxo
escravo Emília as copia no bloquinho de papel que trouxe, pensando que
seria útil fazer algumas anotações. Vera e Sílvia não tiram os
- 49. olhos da lousa. — Leiam
com cuidado estas palavras — pede Irene. — Tudo bem com elas, não é? Estão
“certas”, não estão? — Aparentemente sim — responde Vera. — E de fato
estão — confirma Irene. — Mas se você for buscar a história dessas
palavras e descobrir de que modo elas ficaram com a forma que hoje têm em
português “certo”, é provável que tenha uma grande surpresa... Irene
entrega a cada uma delas uma folha impressa. — Dêem uma olhada neste
quadro... Quadro 2 LATIM FRANCÊS ESPANHOL PORTUGUÊS ecclesia- église iglesia
igreja Blasiu- Blaise Blas Brás plaga- plage playa praia sclavu- esclave
sclavo escravo fluxu- flou flojo frouxo [pág. 44] — E então, Emília? —
provoca Irene. — Não lhe parece engraçado que onde havia um L em latim (L
que se conservou em francês e espanhol) surgiu um “ridículo” R em
português? O que terá acontecido? Será que você e um monte de gente
desavisada estão usando estas palavras sem saber que são “erradas” ou
“engraçadas”? Emília não ousa dizer nada. Irene prossegue: — Leiam agora
esses versos d’Os Lusíadas que estão mais abaixo do quadro. Lembrem-se que
Os Lusíadas foram escritos por aquele que é considerado o maior poeta da
língua portuguesa, Luís de Camões, tido até como o verdadeiro “inventor”
da nossa língua literária...
- 50. Quadro 3 “E não de
agreste avena, ou frauta ruda” (canto I, verso 5) “Doenças, frechas, e
trovões ardentes” (X, 46) “Era este Ingrês potente, e militara” (VI, 47)
“Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta” (X, 136) “Pruma no gorro, um pouco
declinada” (II, 98) “Onde o profeta jaz, que a lei pubrica” (VII, 34)
Irene olha bem séria para suas “alunas” e pergunta: — Nós agora devíamos
estar rolando no chão de tanto rir, não é? Pois acabamos de descobrir que
o tão badalado Camões também “não sabia português”, era “burro” e falava
“língua de índio”! — Está mesmo escrito assim, tia, lá n’Os Lusíadas? —
pergunta Vera. — Pois está — responde Irene. — Não é terrível? Será que
não houve uma só alma caridosa que dissesse a ele: “Não, Luís, não é
frauta, frecha, ingrês, pranta, pruma, pubrica, mas sim flauta, flecha,
inglês, planta, pluma, publica”? Irene pára e observa o ar surpreso das
três jovens. — Mas ainda há pior — ameaça ela. — Vocês se lembram de José
de Alencar e de Machado de Assis? Pois é, eles também escreviam froco em
vez de floco. [pág. 45] — Decifre logo esse enigma, Irene — pede Emília. —
Minha curiosidade está me mordendo toda! Irene sorri: — Mas a coisa é bem
simples, Emília. Existe na língua portuguesa uma tendência natural em
transformar em R o L dos encontros consonantais, e este fenômeno tem até
um nome complicado: rotacismo. Quem diz broco em lugar de bloco não é
“burro”, não fala “errado” nem é “engraçado”, mas está apenas
- 51. acompanhando a natural
inclinação rotacizante da língua. O que era L em latim, nessas palavras do
quadro 3, permaneceu L em francês e em espanhol, mas em português se
transformou em R. Já em italiano, só para vocês saberem, este mesmo L
virou um I: fiamma (“flama”), fiore (“flor”), pianta (“planta”). — Se a
tendência é essa — pergunta Emília —, porque existem palavras em português
que mantiveram aquele L depois de consoante? — Há mais de uma razão,
Emília — responde Irene —, mas nenhuma delas tem nada a ver com “certo” ou
“errado”. Pode ter sido uma tentativa de alguns escritores e gramáticos de
“recuperar” a forma latina original. Pode ter sido uma simples questão de
opção: na época de Alencar e Machado havia a liberdade de escolha entre
froco e floco, o que hoje já não existe. O próprio Camões, n’Os Lusíadas,
escreve ora ingrês, ora inglês. Por razões como essas, entre outras, é que
algumas palavras permaneceram na norma-padrão com o L do latim, enquanto
outras, pelo fenômeno do rotacismo, ficaram com o R. E como os hábitos e
os gostos lingüísticos mudam e variam, hoje já não está mais “na moda”
dizer frecha, froco, pranta... — Puxa vida — deixa escapar Sílvia —, eu
nunca ia poder imaginar uma coisa dessas... — Nem eu — confessa Emília —,
juro que nunca mais vou rir de quem disser chicrete em vez de chiclete. —
Como eu expliquei ontem — retoma Irene —, o português não-padrão é
coerente na sua obediência às tendências da língua. Os falantes do PNP só
conhecem encontros consonantais com R. Na variedade deles simplesmente não
existem encontros consonantais com L. — Mas como essas pessoas são pobres,
analfabetas ou quase — deduz Vera —, vivem nos piores lugares das cidades,
estão longe [pág. 46] dos centros de poder, não escrevem livros nem
trabalham nas novelas de televisão, a língua que elas falam é considerada
52. “engraçada”, “pobre”, “feia”, “errada”, e
por isso a gente é ensinada (e ensina) a rir desse modo de falar... — Mas não
devia ser assim, não é? — completa Irene. — A gente ri de uma frase como
“Cráudia fala ingrês e gosta de chicrete”, mas não ri de “A igreja de São Brás
é perto da praia”, muito embora as palavras das duas frases tenham uma mesma
explicação histórica. E por que a gente ri? Porque a segunda frase tem palavras
que pertencem à língua literária, à língua escrita, à língua que se aprende na
escola e é usada pelas pessoas importantes, ricas, poderosas, “bonitas”. Já a
primeira frase, não. Ela tem palavras usadas por pessoas que, como bem disse a
Vera, sofrem com as injustiças sociais, nunca puderam ir à escola aprender a
língua literária, escrita, dos “ricos”, e falam um português diferente do
nosso. Mas, como estamos vendo, a língua delas não tem problema nenhum: é
coerente, segue as tendências naturais do português e tem uma lógica histórica.
— O problema dessas pessoas, então — conclui Sílvia —, não é lingüístico, é
social? — Exatamente — confirma Irene. — E enquanto não for resolvido,
continuará a ser um probrema sem a menor graça... Emília, Vera e Sílvia ficam
sérias e pensativas. Irene percebe o clima, e para quebrar o silêncio, bate
palmas e diz: — Meninas, não sei vocês, mas eu estou roxa de frio e azul de
fome. Que tal a gente ir para a cozinha preparar uma boa sopa? E assim dá por
encerrada aquela aula.