12 julho, 2012

Preconceito Linguístico

Trecho do livro "A Língua de Eulália", interessantíssimo:

  • Quantas vezes você já ouviu alguém dizer Cráudia, grobo, pranta, ingrês, broco e teve muita vontade de rir, se é que não riu gostoso? Ou então, teve pena do “pobre coitado” que “não sabe português” e fala tudo “errado”? Afinal, os professores, os livros, as gramáticas e os dicionários nos ensinam que o “certo”, o “bonito” é falar Cláudia, globo, planta, inglês, bloco... Emília, Sílvia e Vera estão muito sérias, atentas a cada palavra de Irene. — Mas será que é mesmo assim tão engraçado? — pergunta Irene. — Vamos ver. Ela se levanta, vai até a lousa e escreve algumas palavras: igreja Brás praia frouxo escravo Emília as copia no bloquinho de papel que trouxe, pensando que seria útil fazer algumas anotações. Vera e Sílvia não tiram os
  • 49. olhos da lousa. — Leiam com cuidado estas palavras — pede Irene. — Tudo bem com elas, não é? Estão “certas”, não estão? — Aparentemente sim — responde Vera. — E de fato estão — confirma Irene. — Mas se você for buscar a história dessas palavras e descobrir de que modo elas ficaram com a forma que hoje têm em português “certo”, é provável que tenha uma grande surpresa... Irene entrega a cada uma delas uma folha impressa. — Dêem uma olhada neste quadro... Quadro 2 LATIM FRANCÊS ESPANHOL PORTUGUÊS ecclesia- église iglesia igreja Blasiu- Blaise Blas Brás plaga- plage playa praia sclavu- esclave sclavo escravo fluxu- flou flojo frouxo [pág. 44] — E então, Emília? — provoca Irene. — Não lhe parece engraçado que onde havia um L em latim (L que se conservou em francês e espanhol) surgiu um “ridículo” R em português? O que terá acontecido? Será que você e um monte de gente desavisada estão usando estas palavras sem saber que são “erradas” ou “engraçadas”? Emília não ousa dizer nada. Irene prossegue: — Leiam agora esses versos d’Os Lusíadas que estão mais abaixo do quadro. Lembrem-se que Os Lusíadas foram escritos por aquele que é considerado o maior poeta da língua portuguesa, Luís de Camões, tido até como o verdadeiro “inventor” da nossa língua literária...
  • 50. Quadro 3 “E não de agreste avena, ou frauta ruda” (canto I, verso 5) “Doenças, frechas, e trovões ardentes” (X, 46) “Era este Ingrês potente, e militara” (VI, 47) “Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta” (X, 136) “Pruma no gorro, um pouco declinada” (II, 98) “Onde o profeta jaz, que a lei pubrica” (VII, 34) Irene olha bem séria para suas “alunas” e pergunta: — Nós agora devíamos estar rolando no chão de tanto rir, não é? Pois acabamos de descobrir que o tão badalado Camões também “não sabia português”, era “burro” e falava “língua de índio”! — Está mesmo escrito assim, tia, lá n’Os Lusíadas? — pergunta Vera. — Pois está — responde Irene. — Não é terrível? Será que não houve uma só alma caridosa que dissesse a ele: “Não, Luís, não é frauta, frecha, ingrês, pranta, pruma, pubrica, mas sim flauta, flecha, inglês, planta, pluma, publica”? Irene pára e observa o ar surpreso das três jovens. — Mas ainda há pior — ameaça ela. — Vocês se lembram de José de Alencar e de Machado de Assis? Pois é, eles também escreviam froco em vez de floco. [pág. 45] — Decifre logo esse enigma, Irene — pede Emília. — Minha curiosidade está me mordendo toda! Irene sorri: — Mas a coisa é bem simples, Emília. Existe na língua portuguesa uma tendência natural em transformar em R o L dos encontros consonantais, e este fenômeno tem até um nome complicado: rotacismo. Quem diz broco em lugar de bloco não é “burro”, não fala “errado” nem é “engraçado”, mas está apenas
  • 51. acompanhando a natural inclinação rotacizante da língua. O que era L em latim, nessas palavras do quadro 3, permaneceu L em francês e em espanhol, mas em português se transformou em R. Já em italiano, só para vocês saberem, este mesmo L virou um I: fiamma (“flama”), fiore (“flor”), pianta (“planta”). — Se a tendência é essa — pergunta Emília —, porque existem palavras em português que mantiveram aquele L depois de consoante? — Há mais de uma razão, Emília — responde Irene —, mas nenhuma delas tem nada a ver com “certo” ou “errado”. Pode ter sido uma tentativa de alguns escritores e gramáticos de “recuperar” a forma latina original. Pode ter sido uma simples questão de opção: na época de Alencar e Machado havia a liberdade de escolha entre froco e floco, o que hoje já não existe. O próprio Camões, n’Os Lusíadas, escreve ora ingrês, ora inglês. Por razões como essas, entre outras, é que algumas palavras permaneceram na norma-padrão com o L do latim, enquanto outras, pelo fenômeno do rotacismo, ficaram com o R. E como os hábitos e os gostos lingüísticos mudam e variam, hoje já não está mais “na moda” dizer frecha, froco, pranta... — Puxa vida — deixa escapar Sílvia —, eu nunca ia poder imaginar uma coisa dessas... — Nem eu — confessa Emília —, juro que nunca mais vou rir de quem disser chicrete em vez de chiclete. — Como eu expliquei ontem — retoma Irene —, o português não-padrão é coerente na sua obediência às tendências da língua. Os falantes do PNP só conhecem encontros consonantais com R. Na variedade deles simplesmente não existem encontros consonantais com L. — Mas como essas pessoas são pobres, analfabetas ou quase — deduz Vera —, vivem nos piores lugares das cidades, estão longe [pág. 46] dos centros de poder, não escrevem livros nem trabalham nas novelas de televisão, a língua que elas falam é considerada
52. “engraçada”, “pobre”, “feia”, “errada”, e por isso a gente é ensinada (e ensina) a rir desse modo de falar... — Mas não devia ser assim, não é? — completa Irene. — A gente ri de uma frase como “Cráudia fala ingrês e gosta de chicrete”, mas não ri de “A igreja de São Brás é perto da praia”, muito embora as palavras das duas frases tenham uma mesma explicação histórica. E por que a gente ri? Porque a segunda frase tem palavras que pertencem à língua literária, à língua escrita, à língua que se aprende na escola e é usada pelas pessoas importantes, ricas, poderosas, “bonitas”. Já a primeira frase, não. Ela tem palavras usadas por pessoas que, como bem disse a Vera, sofrem com as injustiças sociais, nunca puderam ir à escola aprender a língua literária, escrita, dos “ricos”, e falam um português diferente do nosso. Mas, como estamos vendo, a língua delas não tem problema nenhum: é coerente, segue as tendências naturais do português e tem uma lógica histórica. — O problema dessas pessoas, então — conclui Sílvia —, não é lingüístico, é social? — Exatamente — confirma Irene. — E enquanto não for resolvido, continuará a ser um probrema sem a menor graça... Emília, Vera e Sílvia ficam sérias e pensativas. Irene percebe o clima, e para quebrar o silêncio, bate palmas e diz: — Meninas, não sei vocês, mas eu estou roxa de frio e azul de fome. Que tal a gente ir para a cozinha preparar uma boa sopa? E assim dá por encerrada aquela aula.

Nenhum comentário:

Postar um comentário